domingo, 22 de fevereiro de 2009

Angola – Ame-a ou deixe-a

PARTE II

Cedo descobri ter duas nacionalidades, a da pele, branca, europeia, portuguesa, e a do coração, preta, africana, angolana. Vivi os dias quentes, abafados, com a eterna e permanente conquista de um espaço k tinha a sensação de não ter sido criado para mim, como se para viver o dia a dia tivesse k minuto a minuto me descobrir numa nova personagem pois a anterior já não era desejada pelos meus interlocutores, só muito mais tarde aprendi a esquecer as nacionalidades e a viver da personalidade em contínua evolução.
Saía de casa logo de manhã, descia as escadas, no prédio onde mais segredo nenhum guardava para mim, umas vezes pelo corrimão desde o 5º andar até ao rés do chão, e quando havia energia eléctrica ia mesmo de elevador parando por todos os andares ou até bloqueando o elevador como demonstração do poder que se tem quando já se conhece como as coisas funcionam, já na rua, respirava fundo, pois apesar de tudo não era fácil uma criança de seis anos fazer algumas dezenas de metros a pé até à escola, a primária 189, e quando possível logo de fronte à escola dava as escapadelas para as matinés do cinema 1º de Maio, este tornou-se paragem obrigatória para muitas brincadeiras de infância e muitos namoros de adolescência, depois, finalizado o ensino primário, calcorreei até ao Alda Lara, uma escola k já distava umas largas centenas de metros de casa e sempre a subir, de seguida o Mutu Ya Kevela e finalmente o centro pré-universitário, PUNIV, sempre a pé, sempre com gosto e muita vontade de andar ainda mais, porque já não era português, porque já não era branco e os angolanos que conhecia tinham nascido aqui, em Luanda ou noutra cidade qualquer, e eram negros e também mulatos, eu não era nem mais nem menos nem na cor nem na forma de vida, e se a pé eles andavam eu não tinha nada que ser diferente, já me bastava preocupar com a notória diferença de pele e de ter sempre que andar com um cartão que dizia ser um estrangeiro, no único território que eu conhecia até então, no território que eu chamava de casa e a única que tinha, nesses tempos de “sermos milhões e contra milhões ninguém combate”, era um entre milhões, mas estava inserido e vivia entre esses milhões.
Mas também havia tristeza e muito sacrifício, a morte de vários homens sonhadores como foi a que acompanhei do poeta presidente Agostinho Neto e de muitos outros, relatados como grandes líderes e intelectuais da luta de libertação, da real opressão dos colonialistas portugueses, durante o clima de medo que se viveu nos idos anos 70. As constantes faltas de água e luz k cobriam a cidade de Luanda num manto delicado e estrelado de escuridão, faltas essas k podiam durar mais de uma semana, lá se tinha k deslocar os víveres perecíveis para a casa de alguém k por alguma razão ainda tivesse energia, até porque nesse tempo eram muito raros os geradores. Da parte da manhã encher a penicada de água, e carregar tudo pelas escadas, era tarefa das crianças e das mulheres k estivessem em casa e não era tarefa fácil, mas para uma criança suportava-se pela brincadeira envolvida k passava sempre por chegar a casa completamente encharcado nas brincadeiras com a água, o cheiro no ar nessas situações era de petróleo, de velas e dos petromaxes, quando ainda sobravam as camisinhas para eles funcionarem, mesmo com a parca luz os amigos juntavam-se na rua ou nos quintais e as conversas eram as da ocasião - mais um ataque da U.N.I.T.A., quanto tempo duraria a repor o poste de alta tensão que eles tinham deitado abaixo, o ataque à barragem deixaria-nos sem produção de cerveja durante uns tempos... Mas passava e tudo passou, sempre com um sorriso, sempre com os amigos, sempre a dividir o k não havia e a repartir o k já não existia, aprendia-se k quando se pede para um pede-se para todos, e se só se obtém para um então mesmo assim tem k chegar para todos. Funcionava desta maneira antiga e estranha para os tempos de hoje a Luanda de ontem, para os gelados como para o pão.
Angola nessa altura era um país confinado a Luanda e pouco mais, quem estivesse em que cidade fosse, raramente saía dela a não ser que intentasse perder a vida na curiosidade de tentar descobrir um país maior que qualquer vida, e só o conseguia com muitos "salvo condutos" para mostrar às imensas barreiras militares dispostas ao longo das estradas e pontes, os campos estavam minados, as emboscadas aconteciam onde menos se esperava e mesmo os militares do M.P.L.A. eram pouco simpáticos e sempre com cara de poucos amigos.

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